Num instante, de repente, cá estava eu novamente pensando como todos os outros. E bateu aquele aperto, aquela cobrança de que tenho que ser mais, ou melhor, de que tenho que ter mais daquilo que uns têm e que outros nem têm. Números, números, números… O homem venera os números porque sempre se pode acrescentar mais um… Então o homem se esquece de aproveitar de verdade aquilo que tem, e aproveita ainda muito menos aquilo que é. Porque nunca lhe convém se sentir bem com o que já tem. Existe a Terra do Nunca e a Terra do Sempre… Sempre correndo atrás de números. É nessa que a gente vive. É o mundo do tenho, você não tem; fui, você não foi; vou, você não vai; você já foi? Eu fui mais... Mas todos se vão! Enquanto isso, não preciso de muito para ser feliz. Por isso relaxo e respiro, afinal, eu prefiro pensar e existir. Prefiro viver, ao invés de passar a maior parte do tempo insatisfeito e tentando decorar números, em busca de mais números. Ricardo Starling Brasília, 4 de fevereiro de 2021.
novo vento amigo
Olha o dia de ontem Acabando na lembrança. De repente, olha eu de novo No espelho da esperança. Tempero, temperança, Temperamento temperamental. No vento que soprou lá de Minas, Ouvi que amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves. Daqui do Cerrado eu grito: Amigo é pra sentar junto, Jogar conversa fora E jogar fora essa chave junto. Eu guardo segredo, meu amigo. A lembrança morrerá junto comigo. E o vento que já soprou Já não volta mais. Falo da morte porque também é vida A tal da partida para o mundo invisível. E a ideia é morrer jovem O mais velho possível, Deixando o vento passar Para o novo vento soprar. Brasília, 31 de janeiro de 2021
cachorro
(para o meu bom e velho Luke) Cachorro, preto, branco, marrom, bicolor, tricolor, colorido, acabou de acordar, dormindo, acordado, dormindo, acordado. Fedido! Rabo grosso, rabo fino. Tem raça ou é virador? Todo cachorro se vira… Vira-mundo, vira-latas, vira-humanos, vira os donos, vira-tudo de pernas pro ar, de cabeça pra baixo (o meu é labrador!). A gente é que pensa que domina os cachorros. Os cachorros têm certeza do contrário: “dominamos!”. São donos das migalhas, de um saco inteiro de pão. Têm até ração, mas é segunda opção. Quer mesmo é o que está na mão. Churrasco, então… (tem cachorro vegetariano!) São donos de todos os corações de seus donos. E são cheios de manias que aprenderam com a gente. Ah… que olharzinho amoroso… Tem cachorro que morde (e morde até o rabo). Pra cada coisa um olhar ou um barulhinho gostoso. Tem cachorro até cheiroso. Repito: o meu tá fedido! Mas isso é um mero detalhe que o torna ainda mais perfeito. Porque ele me ama do meu jeito e nunca se importa se eu estou fedido (ele até gosta). Quer carinho o dia inteiro… Uma das maiores virtudes do meu cão é que ele não fala! Mas ele vem todo cheio de baba. Sai pra lá! Não! Pra não xingar coisa pior. Depois vem o melhor: vem o cachorro, pedindo perdão por me amar tanto, me sujar tanto, por feder tanto… Mesmo que a culpa seja minha por não lhe dar banho. E é assim todos os dias... Todos, todos, todos. Neste coração canino tem espaço para todos. Ricardo Starling Brasília, 16 de janeiro de 2021

desconstrução
Os remédios para mudar o mundo têm gosto amargo. Eu quero atacar o falso real, de conhecimento geral, o produto eleito pela nação, pela maioria, em algum delírio social. Explicar a natureza humana, sua razão e sua existência através da moral ou da ciência é perda de tempo. Tem gente que não ouve nem vê o que há de melhor, mas compra e vende o que há de pior. E a tal da moral põe a culpa no meu ombro. Diz que tudo é um vício, até gostar de você; que tudo é errado, é escombro, e oprime o que há em mim de mais natural. Viver comigo não é um perigo. No caminho que eu sigo, o verdadeiro inimigo é muito mais perigoso. Esta canção ou poesia não é triste. Triste é quem encontra tristeza nesta canção ou poesia. Pois encontrar alegria na Divina Tragédia da vida é ser verdadeiramente feliz. E não importa a força do golpe, terei sempre algo a dizer. Brasília, 15 de janeiro de 2021